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Ariano Suassuna, 95 anos: o último testamento (entrevista inédita)

Por G1 em 16/06/2022 às 06:20:14
Trecho de entrevista de Gerson Camarotti com Ariano Suassuna em 2012

Conheci Ariano Suassuna há 32 anos. Tinha muito interesse pela literatura de cordel, e ele disse que eu aparecesse em sua casa.

Eu era um jovem estudante e pensava que o grande escritor fizera o convite por delicadeza. Quando bati à porta de sua casa, no bairro de Casa Forte, no Recife, percebi que não fora uma formalidade.

Passamos a tarde conversando. A generosidade era uma característica única do mestre Ariano, como costumava chamá-lo. Desde então, passei a visitá-lo com frequência. Nossas conversas ficaram mais longas.

Num dos últimos encontros, ele estava emotivo. “Não tenho meio-termo não, Gerson. Ando muito emocionado. Ou fico à beira de chorar, ou então estou rindo, a gargalhar. Isso não é normal”, me disse, aos risos.

Essa conversa aconteceu em dezembro de 2012 e foi gravada na íntegra. Apenas um pequeno trecho editado foi ao ar pelo GloboNews Em Pauta. Portanto, a longa conversa de três horas permanecia inédita.

O resgate desse encontro, agora em forma escrita, só foi possível graças à parceria com a jornalista Jéssica Valença.

Nesta quinta-feira (16), quando o mestre Ariano Suassuna completaria 95 anos e se iniciam as comemorações do centenário do nascimento do escritor, em 2027, o blog publica esta entrevista inédita, em forma de um verdadeiro testamento literário.

Durante aquela longa tarde, que entrou pela noite, tive a alegria de ser acompanhando também pela artista plástica Zélia Suassuna.

Foi um encontro emotivo. Falamos sobre os acontecimentos trágicos da infância, que também definiram sua vida e obra. Aos 3 anos de idade, perdeu o pai, o ex-governador da Paraíba João Suassuna, assassinado em 1930.

Os sonetos de Ariano e seu livro mais denso, o "Romance da Pedra do Reino", são influenciados diretamente por esses acontecimentos. Nos anos 1970, tentou concluir a trilogia iniciada com a Pedra do Reino, mas não conseguiu. A carga biográfica do pai reapareceu fortemente na obra. “Não aguentei”, me disse Ariano. “A carga era muito dolorosa e parei.”

Em 1981, começou a escrever um novo romance, que só seria concluído dias antes de seu encantamento, em 2014. O "Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores”, com publicação póstuma, tem um forte componente biográfico. Numa só obra, uniu a linguagem do romance, da poesia, do ensaio e da dramaturgia.

O amor por dona Zélia, mulher de toda a sua vida, também está presente na obra. “Zélia aparece de uma maneira muito poderosa, disfarçada nos personagens”, antecipava Ariano. Depois fazia uma previsão: “Tenho certeza de que o livro não terá nenhum sucesso popular”.

Ariano nunca negou que tinha dificuldade em falar sobre a morte. “Nenhum de nós acredita na nossa própria morte”, me disse certa vez. Para ele, a arte era uma tentativa de buscar uma precária e bela imortalidade: “O poeta morre, mas, se fizer uma coisa bonita, ele fica. Esta é a busca de todo artista: a imortalidade por meio da arte. A arte é uma espécie de protesto contra a morte”.

A gravação da entrevista com Suassuna começou à tarde e entrou pela noite na casa do artista, no Recife

Foto: Robson Batista / TV Globo Recife

Entrevista

Veja a transcrição completa da conversa com Ariano Suassuna naquela tarde/noite de 2012.

Blog do Camarotti - Mestre, em primeiro lugar, muito feliz de estar aqui.

Ariano Suassuna- E eu muito contente de receber você novamente.

Blog do Camarotti - Mais uma vez. Eu me lembro das primeiras vezes que eu tive aqui na sua casa quando...

Ariano Suassuna- Quando você esteve aqui, você era adolescente.

Blog do Camarotti - Vinte anos depois, como é que o senhor vê a cultura popular em Pernambuco e no Brasil? Naquela época passava por um momento de crise, um momento de dificuldade. Hoje como o senhor vê isso?

Ariano Suassuna- Gerson, está havendo uma valorização maior da cultura popular. Às vezes, as pessoas pensam que eu só me interesso no Brasil pela cultura popular. Não. Eu falo mais da popular porque ela é a mais discriminada. Eu me interesso pela cultura brasileira em geral e pela cultura universal.

Blog do Camarotti - Agora, a cultura popular passou um tempo muito esmagada, esquecida e hoje está melhor, até certo ponto. Por outro lado, há uma situação nova que é o impacto da cultura de massa. Isso descaracteriza muito as origens?

Ariano Suassuna- Sim, porque uma coisa que me preocupa muito na cultura de massa, Gerson, é que ela nivela pelo meio termo, pelo gosto médio, que pra mim é pior do que mau gosto. Tá entendendo? Eu conheço gênios da literatura universal que tinham mal gosto. Balzac tinha mau gosto. Shakespeare, às vezes, tinha mau gosto. Você vê uma peça bonita como era Romeu e Julieta, mas tem um momento que Romeu diz assim: "Eu queria agora ser uma mosca para pousar no lado de Julieta". Que imagem de mau gosto horrível! E Balzac, ele tem um livro, eu não lembro se é "Ilusões perdidas" ou se é "A procura do absoluto". Um livro com título desse, eu acho que é "A procura do absoluto", ele começa assim: "Era uma dessas personalidades de elite capazes de apreciar, ao mesmo tempo, a geometria do espírito e a álgebra do coração". Rapaz, eu vou te dizer uma coisa. Eu, leitor de uma editora, se chegasse um escritor para eu ler o livro dele pra recomendar, quando eu lesse essa primeira frase, eu diria "pode levar".

Blog do Camarotti - Descartaria...

Ariano Suassuna- Pois é...Balzac! E eu que sou admirador de Balzac. Hoje, até quando eu leio o mau gosto dele, eu digo: 'É puro Balzac', e contente. Quer dizer, então por isso eu tenho medo do gosto médio. Porque gênio com gosto médio eu nunca vi, não. Ou tem um excepcional bom gosto como Proust, que era um escritor de gênio e de bom gosto. Ou era um escritor de gênio e de mau gosto como Balzac.

Blog do Camarotti - Suas influências na literatura universal?

Ariano Suassuna- Dostoievski, Calderón de la Barca, Proust, Molière são as minhas influências.

Dona Zélia Suassuna também participou da conversa

Foto: Robson Batista / TV Globo Recife

Blog do Camarotti - No romance e no teatro?

Ariano Suassuna- Olha, eu recebo uma influência muito grande ao mesmo tempo de escritores que são considerados fora do campo literário, como Cervantes. Mas eu gosto muito de romance de aventura que eu lia adolescente e que até hoje eu leio e releio. Eu gosto muito de reler. Existe um romance de aventura, que eu não sei se você conhece, chamado Scaramouche (de Rafael Sabatini), um livro delicioso de ser lido. E tem uma coisa lá que me toca muito. Aparece uma trupe ambulante de teatro, e o personagem que se chama André Luiz está sendo perseguido politicamente e entra nessa trupe para se disfarçar. E então lá ele começa a assumir a trupe, começa adaptar os textos. E assim ele começa como autor de teatro.

Blog do Camarotti - O seu universo é muito mais do que seu universo na literatura. Vem muito desse espírito circense.

Ariano Suassuna- Muito. O circo sempre me encantou, exatamente, por isso. Eu li uma uma vez uma frase de Marc Chagall, um grande pintor russo. Ele escreveu uma frase sobre circo, uma coisa linda. Que ali, ele pressentia que -- atrás das caretas, das piruetas, dos bailarinos, dos palhaços -- ele via uma face inquietante e profunda. Uma coisa trágica. É como se ali se ouvisse o grito mais pungente da criatura humana em busca do seu ideal. E era por isso que ele pintava tanto circo. Eu entendi imediatamente e aceitei.

Blog do Camarotti - Tem muita mágica na obra de Chagall.

Ariano Suassuna- Muita. Ele é um dos meus pintores prediletos. Eu, talvez, goste mais dele do que de Picasso. Reconheço a grandeza de Picasso, mas me identifico mais com Chagall.

Blog do Camarotti - Esse universo também está muito presente no Brasil.

Ariano Suassuna- Sim. O povo brasileiro é um povo mágico. Não à toa que o romance popular tem também um universo mágico, sai da realidade do nosso povo. Tem uma coisa que me encanta no povo brasileiro – uma qualidade circense – que é o riso e a alegria. O povo brasileiro que tinha, talvez, direito de viver de cara amarrada, enfrenta as dificuldades da vida com riso e imaginação.

Bastidores da entrevista de 2012 com Ariano Suassuna, na casa do autor, no Recife

Foto: Robson Batista / TV Globo Recife

Blog do Camarotti - Isso está muito presente nos seus personagens...

Ariano Suassuna- Sim. Já que falamos em Scaramouche. Existe um filme de Ettore Scola, é um filme chamado "A viagem do capitão Tornado". Eu tenho certeza que o autor de Scaramouche leu o livro que deu origem ao filme. O autor de Scaramouche, Rafael Sabatini, pega o começo do século XX, ele escreve sobre a Revolução Francesa de maneira que eu tenho certeza absoluta que ele leu "A viagem do capitão Tornado". Agora é mais prazeroso ler Scaramouche que o livro lá do romântico francês, "A viagem do capitão Tornado".

Blog do Camarotti - Todo mundo conhece sua obra de teatro, romances, agora poesia...

Ariano Suassuna- Como poeta, eu sou um jovem autor desconhecido. Completamente desconhecido. No entanto, eu considero a minha poesia a fonte profunda de tudo que eu escrevo, mas eu sei que jamais alcançarei o grande público. Nesse romance que estou escrevendo, estou tentando – pela primeira vez – fundir a prosa de ficção com o teatro e a poesia.

Blog do Camarotti - "A Pedra do Reino" já começa a fazer isso um pouco...

Ariano Suassuna: Tanto que eu estou considerando “A Pedra do Reino” como antecessor desse outro romance – "O Jumento Sedutor". [A versão final com publicação póstuma, ficou com o título “Dom Pantero no Palco dos Pecadores”, em dois volumes: “O Jumento Sedutor” e o “Palhaço Tetrafônico”. A obra ficou pronta dias antes do encantamento de Ariano Suassuna].

Blog do Camarotti - Como está essa obra?

Ariano Suassuna- Olha, o meu trabalho de escritor, como você sabe, é muito demorado. Eu escrevo à mão. E eu não escrevo à mão por dever não, eu escrevo por prazer. Eu só gosto de escrever à mão.

Blog do Camarotti - Mesmo depois da informática...

Ariano Suassuna- Mesmo depois da informática. Eu escrevo à mão e eu mesmo ilustro. Ele é todo desenhado, além de tentar fundir a poesia, o teatro e o romance, nesse livro agora eu escrevo à mão e ilustro. Aí o processo é demorado. Mas eu já estou terminando. Eu escrevo e meu genro e meu amigo passam para o computador, que realmente ajuda muito.

Blog do Camarotti - Antes você datilografava...

Ariano Suassuna- Eu datilografava. O trabalho do computador pra mim foi útil nesse sentido que eu aposentei a máquina. Agora vai direto pro computador e eles que fazem. Então eu mudo o que eu quero, eles têm uma paciência infinita, maior que a minha. Então agora estou com uma tesoura e cola, estou cortando o texto e inserindo as gravuras que se referem ao texto. Está na fase final. Essa inserção minha, o livro tem seis partes, amanhã eu estou acabando a quinta. Agora, depois ainda demora. Aí vai para o Alexandre [Nóbrega – artista plástico e genro de Ariano Suassuna]. E ele vai reduzir o tamanho do livro.

Blog do Camarotti - Então ele vai ter algo das suas gravuras, romance, ensaio, poesia e um pouco do seu teatro.

Ariano Suassuna- Sim. Tem bastante. Experiência nova na literatura brasileira. Acho que não existe algo assim com tantos elementos...Acho que não tem não. Pelo que conheço e me lembro não. Especialmente porque nem todo autor desenha.

Blog do Camarotti - Do que trata essa obra?

Ariano Suassuna- Olha, tem um momento que o narrador principal, ele diz o seguinte para o público: “O único livro deixado pelo grande poeta Augusto dos Anjos é 'Eu'". Então pode-se dizer de alguma maneira que o personagem central dessa história também é eu, ou sou eu, ou somos eu, não sei nem como diz...

Blog do Camarotti - O senhor tem uma característica do universo rural – o chamado “Brasil real” – na sua obra. Nessa nova obra, começa a entrar um Ariano mais urbano?

Ariano Suassuna- Não sei se você reparou, mas eu tenho essa ligação profunda com o rural. Eu acho que o universo de um escritor se forma na infância/adolescência. O que ele vive nessa época é o fundamento do seu universo de escritor. Por exemplo, eu sempre reagi quando dizem que "A Pedra do Reino" é um romance regionalista. Eu acho que não é. Porque o regionalismo, ao meu ver, é o neonaturalismo, e eu sabia que o universo da "Pedra do Reino" era muito mais complexo. Tem uma presença do poético que, ao meu ver, vem do folheto. Além do mais, o livro foi escrito em um momento muito duro da política brasileira, em plena ditadura, e eu não sei se você já reparou, mas a "Pedra do Reino" tem elementos que não têm nada de um romance rural. Por exemplo, tem um dia que aparece um jovem padre assassinado, esfaqueado, e se diz que esse padre era ligado ao bispo da região. Isso não era um problema de Taperoá de 1938, isso era um problema do Recife de 1968.

Gerson Camarotti, Ariano Suassuna e Zélia Suassuna, durante entrevista na casa do escritor

Foto: Robson Batista / TV Globo Recife

Blog do Camarotti - Eu considero a "Pedra do Reino" como uma das principais obras para compreensão do país. Esses elementos que estão lá, alguns históricos, outros da sua vivência pessoal, isso que faz essa força para a compreensão do país?

Ariano Suassuna- Eu não sei. Não sei julgar a mim mesmo. Eu posso falar o que eu pretendi fazer. Veja, eu levei um acontecimento do Recife e coloquei em Taperoá, mas o Recife vai aparecer, pela primeira vez, junto com Taperoá nesse romance. Aí você tem uma presença grande do Recife. É o meu universo urbano. É o lugar de dona Zélia (Suassuna), então tudo isso.

Blog do Camarotti - Ela é personagem?

Ariano Suassuna- É. Demais. Não podia deixar de ser.

Blog do Camarotti - Então a gente pode ter uma boa surpresa aí nos próximos meses?

Ariano Suassuna- Boa eu não sei, mas surpresa vai ter.

Blog do Camarotti - Como dona Zélia aparece nesse romance?

Ariano Suassuna- Não posso te dizer, não (risos) Nem devo. Inclusive, a minha editora fez um apelo para eu não dizer mais nada do livro. Mas Zélia aparece de uma maneira muito poderosa e disfarçada. Disfarçada em dois personagens que eu não posso te dizer quais são. A minha pessoa também aparece dividida no livro. Veja bem, eu tenho certeza de que o livro não vai ter nenhum sucesso popular. Eu brinco que eu não escrevi pra chamar o público, o livro é endereçado aos nobres cavalheiros e belas damas da "Pedra do Reino". Quer dizer, aqueles que tenham lido a "Pedra do Reino" e que se identificaram com o romance e gostaram do romance -- que não é nem um décimo dos que gostaram do "Auto da Compadecida". Eu digo logo, não espere um novo "Auto da Compadecida", não, porque não é. É um livro complexo, com presença de poesia. E você conhece minha poesia, ela é meio obscura e afasta um pouco o leitor comum.

Blog do Camarotti - O senhor faz uma comparação entre a sua obra de romance e o alcance popular que tem o seu teatro.

Ariano Suassuna- Eu posso responder sem nenhuma vaidade. Eu não atribuo a mim a receptividade, eu atribuo ao povo brasileiro. Eu atribuo aos folhetos em que me baseei. Me baseei em três folhetos para escrever. O primeiro é um folheto chamado "O enterro do cachorro", que faz parte de um folheto maior "O dinheiro", sobre a importância do dinheiro, que é um tema da literatura clássica, inclusive. O segundo ato se baseia no outro folheto chamado "O cavalo que defecava dinheiro". E o terceiro no "Castigo da soberba", que é um folheto muito bom. Então eu acho que a força popular do "Auto da Compadecida" vem desses folhetos. E, como nesse romance eu não me baseei na vida de nenhum folheto, e sim na vida de um cidadão muito menos interessante do que o folheto, que sou eu, eu acho que o romance tem menos apelo popular.

Blog do Camarotti - Aqui no Recife, Ariano Suassuna também ficou muito marcado, nos últimos anos, também em relação à música. Entre as coisas mais conhecidas, tem o Madeira do Rosarinho, que o senhor vocalizou com muita força, no compromisso pela cultura pernambucana e pela cultura brasileira. Como é esse lado que eu já conheci algumas vezes, tocando violão, de onde vem esse lado?

Ariano Suassuna- Eu sempre gostei muito de música e vou lhe contar, eu cheguei a praticar três artes ou quatro, tá certo? Eu, na juventude, além da literatura, fiz escultura, fiz desenho e gravura e fiz música. Quer dizer, eu cheguei a estudar piano, mas depois eu vi que nós não estamos mais na renascença, não. Quando um Papa chamava o artista e dizia “não se incomode com a manutenção da sua casa que a gente garante, pode fazer o que quiser”, então dava tempo para a pessoa praticar duas ou três artes. Eu tinha que reduzir para fazer o trabalho que sustentava a família, eu tinha que reduzir. Então eu vi: Qual era a indispensável? Era a literatura. Então eu me dediquei à literatura, mas nunca deixei de lado as outras. Você veja que ainda hoje, eu faço gravuras. Eu faço dois tipos de gravura, uma gravura que eu chamo de iluminogravura, que é em cores, e a outra, que eu chamo de estilo gravura, que é preto e branco. E eu sou muito ligado à música. Não sei se você já reparou, eu não compreendo como um poeta da altura de João Cabral não gostava de música.

Blog do Camarotti - Ele gostava só do Flamengo, né...

Ariano Suassuna- Ele dizia que não gostava de música, várias e várias vezes. Inclusive, eu, além de gostar de música, eu gosto muito da minha poesia entrelaçada com o espírito da música. Tá certo? E eu gosto da poesia musical, sonora, que possa ser recitada e que tenha um som bonito. Ela tem um ritmo, a rima, a métrica, isso dá uma ligação estrita com o ritmo musical. E outra coisa, eu não sei se você sabe disso ou está lembrado, mas Nietzsche escreveu um ensaio que eu acho lindo chamado “A Origem da Tragédia segundo o Espírito da Música”, veja bem: a origem da tragédia segundo o espírito da música. Então ele faz uma ligação estreita entre o teatro e o espírito da música. A cadência e o ritmo da música. É por isso que o meu teatro também é um teatro para ser musical e musicado. Para ser ouvido.

Blog do Camarotti - O senhor fala do João Cabral, vocês tiveram uma grande convivência, o que resultou dessa convivência? Há uma diferença clara na obra do Ariano, na poesia do Ariano, mas existe uma origem em comum.

Ariano Suassuna- Muito, éramos amigos. Existe um parentesco. Você veja, por exemplo, ele -- apesar de todas as diferenças -- ele tem um livro de poemas belíssimo chamado “A Educação pela Pedra”. Se você ler o meu trabalho de escritor você vai ver a "pedra" em presença constante, mas a minha visão da "pedra" é diferente da visão de João. João via da pedra a secura. Eu vejo uma coisa mítica quando eu olho uma pedra no sertão. Eu não sei se você sabe disso, mas na literatura popular, existe um gênero chamado "o Castelo”. No Castelo, há [um desafio entre] dois cantadores: um ergue o seu castelo, o outro pretende desmontar o castelo dele. Eu me lembro que no famoso desafio de Francisco Teixeira com Inácio da Catingueira, tem um momento que diz: “Inácio, tu me conheces e sabes bem quem eu sou. Eu posso te garantir que à catingueira ainda vou. Vou derrubar seu castelo que nunca se derrubou”. Aí ele diz: “As paredes do castelo têm 100 metros de largura e tem mais um alicerce com bem 30 de fundura. E do nível para cima, mais uma leva de altura.” Aí diz: “Tem um cachorro feroz/Que tem por nome Iracundo. E uma cobra gigantesca/ Que devora todo mundo”. Aí ele diz: “Pra tudo que lá tiveres, tenho remédio de sobra. Eu dou veneno ao cachorro e meto o cacete na cobra. Derrubo sua fortaleza”. Pois bem, eu conheço Euclides da Cunha, que é um escritor muito forte pra mim, tem uma presença muito grande. Herança que recebi do meu pai que era o maior admirador de Euclides da Cunha. Ele diz que alguns aglomerados de pedras sertanejas, parecem – vistas de longe – ruínas de castelos. A pedra pra mim também é lugar de festa, coisa que não era para João Cabral, mas a pedra nos une.

Blog do Camarotti - Eu me lembro do seu reencontro com a "Pedra do Reino" em 1995 (Em São José do Belmonte), a primeira vez que o senhor voltou lá depois de ter escrito o romance. Como foi esse reencontro?

Ariano Suassuna- Bom, você veja, ali frutificou a "Pedra do Reino". Quando eu publiquei a "Pedra do Reino", os moradores de Belmonte não gostavam daquelas histórias, porque são histórias terríveis mesmo. Massacre, assassinato, degolações. Era um lugar meio maldito, mas com o romance começou a resgatar um pouco. E no romance eu descrevo o meu lado de festa e de riso, eu consegui contar aquela história terrível de uma maneira que também tem sonho e tem riso. Então eles passaram a fazer no fim de maio, esses acontecimentos aconteceram em maio de 1838. No último sábado de maio, eles fazem uma cavalhada e, no domingo, uma cavalgada até a Pedra do Reino – onde há uma festa, várias comemorações.

Blog do Camarotti - Vou voltar para sua poesia que me encanta muito. Essa poesia ela tem uma identificação com seu lado mais íntimo?

Ariano Suassuna- Tem. As pessoas se espantam quando sabem que sou poeta, mas foi o jeito que comecei a escrever. Eu comecei a escrever com 12 anos de idade. Escrevi um poema sobre o sertão, ruim que só a peste, mas era sobre o sertão. E depois é que eu vi, meus irmãos até brincavam que eu era um assassino terrível, porque quando eu não sabia o que fazer com o personagem, eu o matava. Eu comecei escrevendo poesia e nunca deixei de escrever. Agora, publicava só esporadicamente.

Blog do Camarotti - Quais os temas da sua poesia?

Ariano Suassuna- A presença de meu pai é uma coisa muito forte. Eu perdi meu pai aos 3 anos. Ele foi assassinado. Um dos motivos para eu ser tão ligado ao Recife. A última vez que vi meu pai foi aqui no Recife. Nós viemos trazê-lo para pegar um navio. Eu fiquei com minha mãe no cais e uma das poucas imagens que tenho dele é ele acenando da janela. Foi a última vez que o vi.

Blog do Camarotti - O governador Suassuna, ele foi assassinado durante a revolução de 30.

Ariano Suassuna- Nos primeiros dias. Começou na noite de 3 pra 4 de outubro e meu pai foi assassinado dia 9 de outubro de 1930.

Blog do Camarotti - Qual o impacto do assassinato do seu pai na sua vida e na sua obra?

Ariano Suassuna- Terrível. Você bem pode imaginar o que foi isso pra mim, né? Eu com 3 anos, eu não compreendia aqueles acontecimentos. Não sei se você sabe também, mas o assassino do governador João Pessoa (João Dantas) era primo da minha mãe. No dia da morte dele, uma multidão enfurecida cercou a nossa casa. A situação ficou insustentável. Meu pai tirou a família da Paraíba e ficamos morando em Paulista (cidade da Grande Recife). Foi aí que eu vim trazer meu pai para essa viagem – que seria a última vez que o veríamos. Eu estou vendo se me lembro de um soneto que escrevi chamado "Fazenda Acahuan (lembrança de meu pai)".

Blog do Camarotti - (na sequência, Ariano Suassuna declamou o soneto de forma emocionada):

Aqui morava um rei quando eu menino

Vestia ouro e castanho no gibão,

Pedra da Sorte sobre meu Destino,

Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,

Quando ao som da viola e do bordão,

Cantava com voz rouca, o Desatino,

O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia

Eu me vi, como cego sem meu guia

Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.

Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa

Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

Ariano Suassuna- Posteriormente a esse soneto, escrevi um chamado Infância. Então depois de contar o acontecimento da morte do meu pai, aí eu conto o efeito que teve sobre mim. O soneto é feito sobre isso. Não sei se lembro bem, mas vou tentar recitar: "Sem lei nem Rei, me vi arremessado bem menino a um Planalto pedregoso. Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso, vi o mundo rugir. Tigre maldoso. O cantar do Sertão, Rifle apontado, vinha malhar seu Corpo furioso. Era o Canto demente, sufocado, rugido nos Caminhos sem repouso. E veio o Sonho: e foi despedaçado! E veio o Sangue: o marco iluminado, a luta extraviada e a minha grei! Tudo apontava o Sol! Fiquei embaixo, na Cadeia que estive e em que me acho, a Sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!

Blog do Camarotti - A sua poesia tem uma tristeza...

Ariano Suassuna- É verdade, eu tenho essas duas faces. Eu não tenho meio termo, não. Eu sou muito emocionado. Duas vezes, durante essa entrevista, eu tive que me controlar porque fiquei emocionado. Ou estou muito emocionado, ou chorando, ou a beira de chorar, ou estou gargalhando. Isso não é normal não...
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