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Massacre de Haximu: relembre condenação de garimpeiros por genocĂ­dio de indĂ­genas Yanomami

Por G1 em 04/02/2023 às 06:38:12
Investigação do governo Bolsonaro pela prática do crime reascende discussão sobre enquadramento penal de mazelas provocadas pelo garimpo ilegal contra os indígenas. Índios seguram cinzas dos mortos na época do massacre, na década de 90

Carlo Zacquini/Acervo do Instituto Socioambiental

Uma chacina encomendada por um garimpeiro com um bilhete: "Faça bom proveito desses otários". E a súplica de um indígena segundos antes de ser executado com um tiro no rosto: "Garimpeiro amigo".

Os fatos narrados em denúncia do Ministério Público Federal (MPF) de 1993 ilustram o primeiro ato de uma barbárie que culminou na chacina de 16 Yanomami na comunidade do Haximu, em Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela.

Este é um dos dois casos que levaram à condenação por genocídio no país até hoje. O outro foi o massacre da Boca do Capacete, contra o povo Tikuna, no Amazonas.

As consequências do garimpo ilegal – como malária e desnutrição – e o descumprimento de promessas feita por garimpeiros aos indígenas estão entre as principais causas do massacre. Passados 30 anos, a situação não mudou.

Mais de mil indígenas em estado grave de saúde foram resgatados da Terra Indígena Yanomami nas últimas semanas por equipes do Ministério da Saúde que atuam de forma emergencial em comunidades da reserva.

O garimpo já afeta 273 de 350 comunidades, sendo que, desde 2020, diversos polos-base de saúde foram invadidos e fechados pelos garimpeiros, obstruindo a prestação de assistência médica a, pelo menos, 3.485 indígenas.

Na última segunda-feira (30), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso abriu uma investigação que pode levar à responsabilização do governo Bolsonaro pelo mesmo crime.

O inquérito vai apurar a possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediência de decisões judiciais por parte de autoridades da antiga gestão.

STF manda investigar possível crime de genocídio de indígenas por parte de autoridades do governo Bolsonaro

Ato 1: 4 mortos

Os garimpeiros João Neto e Chico Ceará, cunhado de João, estabeleceram-se no Rio Taboca, na Venezuela. Eles ganharam a amizade dos índios, a quem davam gêneros alimentícios de presente. O objetivo era ter anuência do grupo para atuar na região.

Em um dos encontros, os dois garimpeiros prometeram levar aos Yanomami roupas e uma rede. No final de maio de 1993, no dia marcado, os garimpeiros descarregaram em uma pista na Venezuela 12 galões de óleo diesel, de 60 litros cada, mas nenhuma roupa ou rede.

Irritado, o indígena Tuxaua Kerrero foi procurar João Neto, que estava em Boa Vista. Como não o encontrou, disparou um tiro na direção de um outro garimpeiro que estava no local, conhecido como Goiano Doido. Kerrero e um amigo, de nome David, cortaram uma rede que estava no local e pegaram um rádio.

Vinte dias depois, em 15 de junho de 1993, seis indígenas voltaram aos barracos dos garimpeiros para pedir alimentos e outros itens. Estavam armados com uma espingarda. Não carregavam lanças nem flechas.

Pedro Prancheta, um dos garimpeiros, os recebeu com "falsa amizade", como narra a denúncia apresentada pelo MP, e ordenou, por meio de um bilhete endereçado aos colegas, a morte dos Yanomami: “Faça bom proveito desses otários”.

Já a caminho das suas "malocas", os indígenas pararam para comer farinha e foram surpreendidos por 7 garimpeiros: Goiano Doido, Caporal, Careca, Goiano Cabeludo, Paraná Aloprado, Luiz Rocha e Uriçado Branco.

Eles convidaram os Yanomami para caçar antas. Em um primeiro momento, os indígenas recusaram por estarem desarmados, mas, diante da insistência dos garimpeiros, aceitaram a empreitada. Quatro dos seis Yanomami acabaram executados na emboscada.

Silvinha, uma das cozinheiras do garimpeiro João Neto, registrou em depoimento a crueldade dos executores:

“[A testemunha relata] que presenciou Careca dizer que, quando estavam matando estes quatro índios, um deles se abaixou, colocou as mãos no rosto e disse: 'Garimpeiro amigo!'. E Careca deu um tiro bem no rosto dele”, diz trecho da denúncia do MP.

Retaliação

Os Yanomami têm como tradição cremar seus mortos.

Por isso, Paulo Yanomami, um dos sobreviventes, voltou ao local onde os corpos dos indígenas foram enterrados.

Acompanhado de outros indígenas, Paulo resgatou três cadáveres e fez as fogueiras para a cremação. O quarto corpo não foi localizado.

Durante a cerimônia funerária, os Yanomamis planejaram uma expedição para retaliar os garimpeiros. A incursão acabou na morte do garimpeiro “Fininho”.

Eles permaneceram no mato por alguns dias antes de voltar para suas malocas. Ao chegar à comunidade, decidiram se mudar para não serem surpreendidos pelos garimpeiros. Construíram então "tapiris", uma espécie de cabana, em uma roça velha.

Mais de uma semana depois, os Yanomamis de Haximu foram convidados a participar de uma festa em um local conhecido como maloca do Simão.

Os homens saíram das instalações rumo à festa no mesmo dia, deixando mulheres, crianças e idosos. Acreditavam que os garimpeiros não atacariam crianças e mulheres.

Fantástico mostra a situação dramática do povo Yanomami e as ações para levar socorro até a região

Ato 2: 12 mortos

Narra a denúncia do MPF, baseada no depoimento dos indígenas e dos genocidas, que "a audácia dos indígenas fez eclodir uma fúria indomável sobre o bando de garimpeiros".

"Estes [os garimpeiros] começaram a organizar uma operação com o objetivo de varrer definitivamente do mapa seus desafetos”, diz o documento.

Os garimpeiros se juntaram a pistoleiros e partiram para a expedição a fim de executar os Yanomamis.

Chico Ceará, João Neto, Eliézer, Cururupu e Pedro Prancheta compraram munições e distribuíram aos garimpeiros Goiano Doido, Pedão, Neguinho, Parazinho, Ceará Perdido, Goiano Boiadeiro, Japão, Boroca, Maranhão, Adriano, Paraná Aloprado, Barbacena, Goiano Barbudo e Silva.

Quinze homens partiram com o seguinte arsenal:

15 espingardas;

8 revólveres calibre 38;

3 facões;

1 faca.

Depois de não encontrarem os Yanomami nas malocas, decidiram pernoitar no local e continuar as buscas pela manhã.

Entre 10h e 11h de 23 de julho de 1993, 12 indígenas da comunidade Haximu que permaneceram nos tapiris foram massacrados a tiros e golpes de facão e facas.

Foram mortos:

duas mulheres idosas, uma delas cega;

um homem idoso;

duas mulheres adultas;

duas adolescentes;

três meninas, uma de um ano de idade, outra entre 3 e 4 anos e a terceira, de 7 anos;

dois meninos, de 7 e 8 anos.

"Atiraram indistintamente contra mulheres e crianças desarmadas e indefesas. A brutalidade atinge até mesmo uma criança de colo, de apenas um ano de idade, que é trespassada por uma faca, em um golpe desferido por Goiano Doido. Tudo isso pela condição de as vítimas serem [da comunidade] Haximu", afirma a denúncia do MPF.

O fato chegou às autoridades em 17 de agosto de 1993 por meio de um bilhete escrito pela freira Luzia Pereira Leite, conhecida como irmã Aléssia. Ela enviou uma carta do posto da Funai em Xidéia, ao administrador Luis Eustorgio Pinheiro Borges.

Condenados

Os garimpeiros souberam que o caso havia sido descoberto por emissoras de rádio do Amazonas. Eles decidiram, então, fugir pela pista clandestina de Raimundo Nenem Velha, rumo a Boa Vista.

Pedro Prancheta, João Neto, Pedão, Chico Ceará e Goiano Doido foram reconhecidos. Eles chegaram a ameaçar de morte os garimpeiros que encontraram na pista para não serem delatados, diz a denúncia do MPF – apresentada pelos procuradores da República Carlos Frederico Santos, Franklin Rodrigues da Costa e Luciano Mariz Maia à Justiça Federal de Roraima.

"Nas duas chacinas, estão presentes os elementos que tipificam o delito de genocídio. Garimpeiros atacam e matam índios – a quem não conhecem pessoalmente pelos nomes e de quem individualmente não tem razão de ter hostilidade – pela condição de serem índios membros da comunidade Yanomami dos Haximu", diz o documento.

"Nenhum dos garimpeiros ouvidos, ou suas cozinheiras, ou os informantes sabia identificar qualquer índio pelo nome", completam os procuradores na denúncia.

A denúncia foi apresentada em 15 de outubro de 1993 contra 24 garimpeiros e apontou os crimes de:

genocídio;

associação para genocídio;

garimpo ilegal;

contrabando;

ocultação de cadáver;

crime de dano; e

formação de quadrilha.

Apenas cinco foram identificados plenamente e condenados. Os demais garimpeiros eram conhecidos por codinomes e havia poucos dados sobre eles.

Julgado três anos depois pela Justiça Federal de Roraima, em dezembro de 1996, o caso resultou na condenação de:

Pedro Emiliano Garcia;

Eliézio Monteiro Neri;

Juvenal Silva;

João Pereira de Morais; e

Francisco Alves Rodrigues.

Estes dois últimos faziam parte do grupo que só foi identificado plenamente durante o processo.

A decisão de condenar os participantes por genocídio foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em setembro de 2000.

A última decisão sobre o caso de Haximu foi tomada em 2006. O plenário do STF decidiu, por unanimidade, que o crime foi um genocídio e manteve a condenação da Justiça Federal de Boa Vista.
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